sábado, 21 de novembro de 2015

domingo para segunda

quais segredos esqueci?
minha pobre mente a esvair-se em anedotas
quem teme o temor está perdido
nas brumas do Tejo nessa manhã de segunda
profunda
como um domingo de chuva

sexta-feira, 26 de setembro de 2014

preciso descansar

estou cansado
farto
meu corpo
minha alma
doem

meus braços e ombros
pesam
as pernas dobram
o peito não aguenta

Deus,
por que tudo é assim?

tenho a cabeça confusa
a martelar nós
a apertar pregos
a atar parafusos

é altura do descanso
que descanso?
isso é piada
de gosto nenhum

preciso de mim
inteiro
verdadeiro
livre do mau
longe do ruim

pulsa uma vida
outras esvaem
é a relação do outono
com as folhas que caem

limparam a mesa
onde eu estava
a sujar com palavras
pela mente ditadas

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

terra estrangeira

meu coração
bate desorientado
desmundo
desnudo

o que fazer?
ver o mar
ir às montanhas
voar

a consciência por aqui
cobra ainda mais o existir
o que ter
quem ser

tudo o que se preza
numa reza
numa perda
num ganho

por enquanto
engano
desaponto
nego

estou assim 
é assim
coisas e causos
numa terra sem fim

quarta-feira, 3 de setembro de 2014

misantropo

não me vejo noutro
noutro canto há outro
só aperto as minhas mãos
pela aversão
quando as lavo
pareço sentir-me longe
daqueles com os quais
talvez entender-me-ia mais

terça-feira, 2 de setembro de 2014

compromisso

vamos embora
a vida livre é relógio sem ponteiros
não tem hora
é barriga depois do almoço
não tem fome
é sede depois de esvaziar a garrafa
anda
deixa essa segunda
porque a primeira começa agora

sexta-feira, 29 de agosto de 2014

pediram-me uma folha

Caminhávamos juntos, pés com pés. Eu e meu jeito torto de ser. Sempre comigo. A passos esquisitos por ter uma perna mais curta que a outra.
Nessas passadas irregulares, logo após chegar ao Parque Central, um sujeito dirigiu-se a mim. Disse-me qualquer coisa, mas eu tinha os fones aos ouvidos e o cérebro concentrado na melodia de Camelo. Não entendi nada.
Pensamos sempre naquelas coisas que nos pedem na rua: dinheiro, cigarros... Pensamos que estão a nos vender drogas ou qualquer outro delírio.
Tirei os fones e disse:
- Não entendi, mano.
O rapaz era um negro alto e estava vestido com roupas largas. Também tinhas uns fones. Eu também tinha a camiseta larga por não gostar delas grudadas ao corpo.
Ele segurava uma folha pautada preenchida, em todos os espaços possíveis, com versos em uma das mãos e uma caneta azul na outra.
- Não tens aí folhas que me possa desenrascar? Pode ser?
Eu fiquei tão estupefato com o pedido que na hora hesitei e meneei a cabeça negativamente. Pus-me ao andar torto e a pensar naquele pedido intensamente. Sei, parece bobo.
Alguns segundos depois, fui ao encontro dele e pedi desculpas. Sempre tenho papeis e canetas em minha mochila. E sempre estou a carregá-la.
- Tenho cá um caderno. Esqueci-me dele. Pode ficar com ele.
- Não precisa. Quero apenas umas duas ou três folhas.
Perguntei:
- Estás a escrever músicas?
- Sim. Escrevo rap. Tenho muitas ideias e não tinha mais onde guardá-las. Se não escrevê-las logo, esqueço-as rapidamente.
Entreguei as folhas.
- Boa sorte, então! Força!
- Obrigado!
- Tá-se bem.
É de se pensar. Geralmente nos pedem papel para anotar um endereço, um número de telefone, um recado... Mas não para escrever uma poesia, uma letra de música, um conto...
Tive a sorte grande. Pude ajudar um poeta. Espero não esquecer desse dia.

terça-feira, 1 de julho de 2014

A vida deve fluir como a água de um rio

Francisco Oliva Oliveira. Esse é o nome da nossa personagem principal. Não usaremos o termo protagonista porque, mesmo sendo um bocado estranho, não somos protagonistas de nada.
Também não sejamos fingidores. Essa pobre criatura não existe fora do todo contextualizado nas linhas que hão-de seguir. Mas, meus caros senhores, hei-mos de lembrar da familiaridade da vida, ainda sendo esta – como dizem – tão singular.


Francisco Oliva Oliveira era um homem com algumas dezenas de anos de idade. Sujeito com uma não disfarçada corcunda cervical surgida não por efeito vitorioso da gravidade ou resultados naturais ao avançar da idade, mas sim pelo peso do desânimo presente há muitos anos em sua vida.
Seus olhos pretos pareciam azeitonas de má qualidade acabadas de serem retiradas de uma salmoura rançosa qualquer. Sempre estavam marejados, miúdos e ranhosos. Pareciam querer se esconder do mundo. Porém, fechar os olhos não bastava para isso.
Tinha estatura mediana. Sua pele era da mesma tonalidade da cor da pele de um mouro. Aliás, ele lembra de seu pai a descrever a árvore genealógica da família, e de descobrir os traços característicos ao reconhecer as descrições quando fitava o seu reflexo ao espelho. O seu sangue provinha dos povos da antiga Mauritânia. Não sentia orgulho ou desgosto por isso.
Devido a uma queda que sofrera quando arriscara fazer uma caminhada pelas trilhas de Sintra, quando jovem, ficara manco da perna esquerda.
Tinha, desde então, um andar cambaleante. Hesitava sempre em mexer o membro afetado e isso, repetidamente por anos, fez ele adquirir uma peculiar esquisitice ao locomover-se.
Na altura do acidente, quando fora avisado pelo médico ortopedista que quebrara o fémur e o acetábulo, fizera uma promessa: se saísse ileso daquela situação sem sequelas, nunca teria um carro ou moto. Pois bem, como eu lhe disse meu senhor, ele ficara manco. Teve, portanto, alguns carros.
Nunca mais a vontade que tivera em ganhar a Europa guiando um automóvel ressurgira. Perdeu tal vontade quando a perna ficara rota. Teve de deixar de lado as aventuras. Os mapas traçados com o roteiro a sair de Lisboa, passar pelos países sulistas do Velho Mundo e regressar pelo norte, ficaram guardados às gavetas dos inúmeros armários da antiga casa dos pais onde nascera e fora criado. Guardadas também estavam a jovem vontade e a força.
Todos os projectos de vida não eram concretizados. Refiro-me apenas aos ligados à aventura, como por exemplo fazer a referida viagem, ou qualquer projecto com desafios, porque nunca mais propunha a si mesmo desafiar-se. Perdeu o interesse.
Fora por indicações médicas psiquiátricas que começara a escrever. Escrevia não pelo gosto ou prazer. Pode-se arriscar dizer por desgosto mesmo. Escrevia para esvaziar ou tentar reviver lembranças do irmão. Não se prendia a géneros ou a formas, deixava apenas as palavras seguirem a vida, o rumo delas próprias. Já que a vida faz-nos piadas de mau gosto e ri-nos da nossa pequenez e insignificância.
De linha em linha, o conjunto dessas letras ganhava a atenção de Francisco e isso era o que importava para ele. A escrita servia como catarse. Cuspia tudo o que lhe vinha à mente de forma intranquila, de um modo caótico e, por muitas vezes, desconexo.
Quando as palavras surgiam, precisava logo de anotá-las. Cada uma poderia ser um indício, uma vaga lembrança, servir de esperança. E nada deveria ser perdido, desperdiçado. Absolutamente nada. Do contrário, elas esvaiam-se na poeira da memória feito pólen na primavera.
Para se precaver das perdas vocabulárias, comprava blocos de anotações com capas vermelhas. E neles encontravam-se rabiscadas tantas palavras e junções que arrancavam sorrisos meia-lua esperançosos da alma desse homem. Era difícil manter a esperança diariamente. Cada dia era um dia. Não se sabia se um dia a mais ou um dia a menos.
Frequentava a infância furtivamente porque acreditava encontrar lá um alento, uma resposta para a infelicidade presente até hoje, algo que acalmasse a dor causada pela falta do estimado irmão. Acreditava nisso. Estava sempre à procura das reminiscências para se pôr a par das ausências.
Gostava de saber porque perdera a luz, porque e em qual das alturas da vida a alma apagou algumas das suas luzes. Algo o deixara com a cabeça atormentada na infância. A sua mente cruzara alguns caminhos e não soubera retornar ao ponto de partida. As conexões ficaram confusas. Por isso frequentara seções de terapia duas vezes por semana durante alguns anos. Depois, tivera a certeza por si só de isso não bastar e resolveu abandonar, contrariado pela mãe, o tratamento.
Lembra de ser uma criança feliz e de brincar com os pais e com o irmão, fazer dezenas de viagens no verão.
Tais andanças eram devidas ao espírito aventureiro do pai, Afonso de Oliva Oliveira. Este senhor português, desde muito antes de acumular fortuna com o comércio, já havia conhecido dezenas países e lugares em todos os continentes. A vontade de cruzar a europa a conduzir um carro partira do pai e Francisco, o nosso protagonista, apoderou-se do sonho paterno.
A mãe dele também era uma aventureira. A chilena María Muños de Oliveira conhecera o futuro marido numa viagem que fizera a Grécia. Naquele país, os dois denunciaram um ao outro um amor à primeira vista. Renderam-se ao amor e juntaram-se à vida.
Quando a família perdeu para o rio o filho mais velho, todos somatizaram o abalo e sofreram por anos. A vítima, sem saber, fizera outras vítimas. Porque quando morremos, corações sofrem, espírito e corpos adoecem, e até por vezes até padecem.
Fora no Tejo que o único irmão de Francisco falecera, quando nadava contra uma forte correnteza. As braçadas firmes e perfeitas pretendiam ganhar uma aposta: nadar maior distância percorrida em um minuto. Rituais de passagem quando se é novo e anda-se com a malta. É preciso estar entre os melhores desde miúdo. É preciso ainda ser o melhor entre os miúdos.
Quem estava presente naquela fatídica tarde, disse ter visto os braços do rapaz pararem de bater e de seguida o corpo ser levado pela correnteza. Bruno era astuto e forte, características admiradas pelos amigos. Para Francisco, o irmão era um ídolo.
É triste quando um dos nossos morre. Desolador é morrer por três cigarros. Esse era o prémio da aposta: três míseros cigarros.
A depressão tomou conta de todos por mais tempo do que deveria conservar um luto. Se é que coisas desse tipo são possíveis de mensurar o tempo certo a durar. Era uma família feliz. Não apenas durante os almoços dominicais ou em festas familiares.
Depois da tragédia, a mãe e o pai, um casal amigo e inseparável, mal se falavam. Isso foi demasiado estranho. Antes, diariamente e religiosamente, os dois sentavam-se à varanda no final da tarde para tomar chá preto e conversar, fazer um resumo do dia e relembrar. Não passaram a odiar-se. Não houve desamor. Era mesmo a dor. A maldita dor.
Com Francisco não foi diferente: o puto fechou-se num mundo particular, onde pensava somente em tudo o que vivera com o mano. Parou de se alimentar e adoeceu. A inanição, somada ao grande golpe da vida, provocou danos sérios à sua saúde. Incluindo a perda da memória. Depois de tratamento longo, pode-se dizer que superou, em partes, o baque.
Como passou a escrever, na verdade, a escrita servia-lhe também como ferramenta de busca por informações do irmão, estava sempre a rabiscar palavras com intuito de buscar as lembranças. Não eram as simples informações as quais conseguia-se com os amigos e conhecidos. Tratava-se de coisas feitas apenas pelos dois, na cumplicidade e parceria dos irmãos, só e apenas por eles, e ninguém fazia a mínima noção disso.
Numa tarde qualquer, Francisco estava deitado com a cabeça apoiada em um travesseiro com fronha poida. Adorava roupa de cama velha. Olhava pela janela à sua direita e via o sol a bater nas folhas de umas árvores grandes. O vaivém o fez lembrar de um final de semana de verão em casa da avó Benedita, no Alentejo.
Depois do almoço, sempre caminhavam pelas terras da família e sentavam-se à sombra das árvores para comer figos e outras frutas. Naquela altura, os irmãos sempre se separavam dos mais velhos e caminhavam para a ribeira a fim de nadar um bocado. Lá ficavam por uma hora ou duas, depois juntavam-se novamente ao grupo.
Durante essas reminiscências, uma frase veio como um clarão e não saia da cabeça de Francisco: “vamos deixar debaixo dessa pedra”. E isso o deixou com a curiosidade a latejar como quando estamos com muita dor de cabeça.
- “Vamos deixar debaixo dessa pedra”, dizia ele em voz alta.
Repetidas vezes. A balbuciar cada palavra como um calão popular. Como se estivesse a chamar nomes aos quatro ventos para desabafar. Decidiu caminhar até ao lago do Carmo, onde lembrava de ver tantas pedras das ruínas da igreja. Ele, o irmão e os amigos jogavam à bola nesse largo e, por diversas vezes ela iria parar por entre os escombros que ali estavam.
Sentou-se à esplanada de um café, em uma mesa bem próxima ao chafariz, pediu um descafeinado cheio e uma água com gás. Ficara ali tempo suficiente para desistir de recordar de alguma coisa substancial.
Levantou-se e, quando começou a subir a rua da Oliveira ao Carmo, em direcção ao miradouro, resolveu parar mais um bocadinho. Virou à direita da primeira travessa e sentou-se ao sopé de uma comprida porta verde que estava com ar de arranjada a pintura recentemente. Tirou do bolso do casaco o livro vermelho e escreveu:
“Imperecível é a dúvida e a vontade da vida. Qual é a distância a ser percorrida? Eufemismos desagradáveis, sustentáveis para eu poder seguir. É como quando fazia com o meu amigo Roberto: todas as piadas são um caminho certo. Rir é mais que um santo remédio”.
E lembrou-se do amigo Roberto. Há tantos anos não o ia visitar. Será que ainda vive àquela casinha bem próximo a igreja da Memória? Decidiu ir até lá para conferir. Não tinha compromisso algum mesmo. Apanhou o eléctrico ali próximo, desceu ao Cais do Sodré e subiu ao 15. Saltou ao Mosteiro dos Jerónimos e caminhou até a casa do amigo.
Tocou a campainha. De dentro da residência, saiu um senhor muito animado e bem-disposto. Sim, tratava-se do amigo Roberto, um professor universitário reformado.
- Olha quem resolveu aparecer. Anda cá e dá-me um abraço, Francisco. Quantas saudades tuas. Anda, entra. Vamos tomar um café.
E Francisco, depois de abraçar o estimado amigo, segui-lo pelo corredor ladeado com dezenas de plantas e flores coloridas até a entrada, disse:
- É com muito gosto que entro. Mas só bebo descafeinado.
O amigo pôs-se a rir baixinho e a pensar nas exigências feitas pela velhice.
- A cafeína não te faz bem?
- Não. Tira-me o sono e deixa-me irritado.
- A mim é isso também, só que ao contrário. Ehhe… Dá-me sono e deixa-me alegre. Na medida que preciso. É melhor isso aos remédios para dormir e sorrir. Há dezenas da velha-guarda nesse estado, a gastar o dinheiro da reforma em dúzias de comprimidos. Sorte a minha desse meu vício do café calhar-me muito bem.
Francisco ficou meio sem jeito por fazer parte do grupo ao qual Roberto estava a gozar. Decidiu perguntar ao amigo se ele não tinha cápsulas de descafeinado. Roberto riu, agora em voz alta.
- Cápsulas? Isso lá é café? Meu amigo, café feito em casa à maneira é de saco ou na Moca. Dessas maquinetas só vejo em casa dos meus filhos e em lojas. Lá, eles nem mo oferecem. Já sabem da minha opinião. Mas deixa lá de parvoíce e toma uma xícara.
Francisco aceitou para mostrar que ainda aguentava firme ingerir alguma quantidade de cafeína a acelerar e desestabilizar todo o corpo.
Seu amigo, depois de servir aos dois e sentar-se, perguntou, e gostava mesmo de saber, ao amigo o porquê de aparecer em sua casa depois de tantos anos. Mas antes de Francisco responder qualquer coisa, Roberto foi logo a dizer:
- É por conta do teu irmão, estou certo? Olha, tu ainda não aprendeste a lidar com a morte dele. Deixe-o sossegadinho lá. Deixe-o descansar como se deve. Já lá se vai tanto tempo.
- Diz-me isso porque não foi um dos teus que se afogara. Se estivesses tu em meu lugar aí é que eu gostava de ver.
Ficaram os dois em silêncio a ouvir um disco de Carlos Paredes a tocar bem baixinho, a embalar as ideias nas cabecinhas grisalhas dos velhos conhecidos. Quando começaram as primeiras notas de Verdes Anos, os dois puseram-se a chorar calados. Olharam-se mutuamente e sentiram o vazio, um pedaço da solidão de suas almas.
            - Sei o que é a perda. Não te lembras da morte de Rosário? Perdi minha companheira brutalmente, nem gosto de lembrar. A vida perde a cor quando perdemos um amor. Não é mesmo? Mas a minha vida, assim como a tua, continua. Não posso desperdiçar o que Deus me dera. Tu também não devias.
            - Sim. É verdade. Concordou Francisco meneando sinuosamente a cabeça. E continuou:
            - Vim até cá ter consigo porque lembrei de uma frase. Gostava de saber se mo podes ajudar.
            - Frase? Ó pá, qual frase?
            - O Bruno dissera-me “vamos deixar debaixo dessa pedra”. Sabes o que pode ser?
            - Gostava de saber. Mas não faço lá ideia do que se trata. Pode ser muita coisa como também poderá não ser nada. Ele disse mesmo isso? Tens a certeza? E se for a tua cabeça por meio da imaginação, cansada desse assunto, a pregar-lhe peças para largar disso de uma vez? Deixa lá isso. Toda gente se vai. Um dia serei eu, outro dia serás tu. Só não sei se tu vais primeiro ou eu é quem vai.
            - Bem, pensei que talvez...
E suspirou por não ter conseguido êxito. Mais uma vez, ficaram em silêncio. Ao fundo Paredes tocava Canto do Amanhecer, e inebriado pela melodia, Roberto perguntou ao amigo:
- Já reparaste no tempo que andas a perder? A vida é muito curta para se ocupar com coisas que não nos levará a nada. É preciso ter força todos os dias. É preciso agradecer por estar vivo e poder desfrutar de tudo. A consciência disso nos vem tarde, mas nunca é demasiado tarde para se perceber. Aposto que ainda tens os blocos de anotações guardados e ainda carrega um consigo. Estou certo? Aproveita dessas anotações e escreva um livro. Aproveita tudo isso.
Francisco apenas olhou para Roberto com ar de quem não precisa pronunciar palavras para dizer algo.
A angústia naquele olhar estava nítida. Afinal, Francisco gostava de esquecer tudo aquilo. De, assim como disse-lhe o amigo, seguir a vida e não perder mais tempo.
Ninguém é dono do tempo, mas é responsável, sim, pelo tempo perdido. E nessa métrica a conversa foi encerrada. Francisco aproveitou o começo do escurecer do dia e pediu licença para ir-se embora. Disse estar cansado demais para uma quarta-feira.
Ao atravessar o portão enferrujado e preparar-se para descer as três escadinhas que separavam a casa da rua, Roberto começou a falar novamente:
- Olha, lá. Tens mesmo de deixar tudo isso, meu amigo. Venha cá mais vezes quando quiser. Podemos sempre conversar um bocado de futebol ou posso contar anedotas de quando lecionava Literatura na faculdade. Tenho boas histórias. São tantas as lembranças… Isso mantém uma pessoa viva, as boas recordações. As boas…
Quando parecia terminado o discurso, ele ainda faz mais uma pergunta:
- E a tua viagem pela Europa? Não esqueço-me disso. Lembro-me perfeitamente do plano de passar pelos países dentro de um carro. Vais criar coragem e realizar isso? Hã?
Francisco permaneceu parado por mais uns minutos. Na janela da casa ao lado, uma senhora muito idosa espreitava-o com curiosidade passiva. Lá estava ela, do lado dela. Lá estava ele, do lado dele. Mas ambos pareciam não estar. A velha senhora via o mundo pela janela da sala. Francisco pensou que logo estaria tão velho quanto ela. E tão logo teria uma janela fechada para o seu mundo. Não desejaria isso. Ninguém quer uma janela para uma parede cinzenta. 
A sua mente parecia um turbilhão de ideias. Em parte, por culpa da cafeína. Os pensamentos os levaram a imaginá-lo também numa janela, a murmurar pelos últimos dias de vida. E pensou no irmão. Pensou nos pais. Pensou nele. Na solidão dele. Na solidão dos dias. Lembrou da vida. Pôs-se a olhar para as mãos e perceber uma pele a perder a lutar contra a idade. Virou a cabeça para Roberto.
- A Viagem ainda vive. Está guardada, mas vive. Tens razão, meu amigo. É preciso seguir em frente. Assim como os planos da viagem, preciso sair dessa gaveta poeirenta e cheia de traças. Passo cá outro dia.
Foi até ao final da viela e virou à direita. Sentou-se num banco em madeira pintado de amarelo, tirou o bloco do bolso, sacou a esferográfica preta e escreveu:
“Conversar é necessário para expor. Mas cuidado para não se expor demasiado. As palavras são amigas e inimigas do homem, seja ele um sábio, seja ele leigo. Tentar encontrar algo, pode fazer perder aquilo que não tinha. Perder é ganhar. Perder-se é encontrar-se. É preciso dizer sim à vida. É a altura disso”.
Lera rapidamente as palavras acabadas de escrever. Fechou o bloco e o guardou juntamente com a caneta. As mãos ainda tremiam por efeito da cafeína. Por Deus! Não estava mesmo mais habituado com os efeitos por ela causados.
Levantou-se e atravessou a rua. Fora até a paragem de táxi. Entrou e pediu para o chofer o levar para casa. Quando lá chegou, tirou as meias e deitou-se na cama. A cabeça estava a doer e precisa descansar.
O dia amanheceu chuvoso. Uma chuva em pleno verão, vá lá. Francisco sentia-se melhor em relação a dor, mas angustiado com tudo o que dissera Roberto. Estava a cobrar-se por ser egoísta a ponto de esquecer de tudo e querer entender o passado. Pensou nos motivos por nunca ter casado e não ter filhos. Isso o deixou triste. Poderia ser uma pessoa mais feliz se tivesse formado família.
Levantou-se e dirigiu-se à casa de banho. Enquanto sentia a água abençoar o corpo, começou a dizer bem baixinho a frase: vamos deixar debaixo dessa pedra. Mas o que será isso? Perguntava a si. Sem resposta para si.
Vestiu-se. Calças em cor bege, pólo branco e sapatos castanhos. Desceu à rua e foi ao café habitual para fazer o desjejum. Tosta mista, galão descafeinado e pastel de nata. Ao final, traz-me uma Pedras fresca, se faz favor. Esse foi o pedido. Comeu devagar, não tinha pressa para nada. Espera, tinha sim uma pressa: a interior, em desvendar o enigma da frase lembrada.
Ao sair do café, fez festinhas na cabeça de um puto com caracóis alourados. O miúdo de uns dois anos, sorriu alegremente para Francisco. Este ficara satisfeito com o gesto.
Resolveu retornar para casa. Ao abrir a porta, olhou directamente para a parede à sua frente. Bem ao lado esquerdo desta, havia uma fotografia emoldurada de preto. A imagem fora retratada na quinta de sua avó no Alentejo. Sim, naquela mesma em que a família passara feriados e finais de semana.
Pensara que aquilo era um sinal e deveria de segui-lo. Iria para a quinta tentar lembrar o que significava a frase. Tentar descobrir algo para deixar as lembranças de lado. Afugentar a tristeza pela falta do irmão. Deixá-lo em paz. Ficar em paz. Viver, enfim, em a sua paz.
Preparou uma mala breve, com mudas de roupas, toalha e pijamas às riscas. Retirou as chaves do Mercedes preto guardadas na gaveta junto com os blocos de anotações preenchidos nas últimas semanas. Francisco ainda permaneceu alguns minutos a folhear páginas. Encontrou isso:
“Estou certo da incerteza. Posso dizer ao acaso que apareça apenas com hora marcada. Quando as luzes não acenderem, a solidão anseia por conversa e arrisca uma nova amizade. Fugir para ficar calado, triste solução. Às horas, virá quem há-de vir. No mais tardar, fique tranquilo porque o sol lhe fará companhia às sete da manhã do outro dia”.
Ficara ainda mais animado depois de ler essas palavras escritas por ele. Pensara ser mais uma coincidência a incitá-lo a seguir com a viagem. Sem demora, tirou o carro do parque e seguiu estrada fora.
Ao chegar à quinta, o zelador e sua mulher estranharam a presença inesperada.
- Bom dia, senhor Francisco. Veio sem avisar?
- Bom dia, senhor Pedro. Bom dia, dona Maria. Decidi na última das horas que viria cá hoje mesmo. Não se preocupem comigo. Sei onde está tudo e arranjo-me sozinho. Peço, por favor, que prepare para mim o pequeno-almoço e almoço para amanhã. Está tudo bem por aqui?
- Pode deixar. Está tudo bem. Se precisar de alguma coisa, estamos cá. O quarto do senhor está em ordem, assim como toda a casa.
- Obrigado. Respondeu ainda com o carro em movimento.
Deixou a mala em cima da cama muito bem arranjada. Parecia até que o esperavam. Foi à cozinha, bebeu um golo d’água. Saiu em direção ao caminho que a família fazia quando todos lá estavam.
Caminhou com o espírito confiante e a cabeça erguida os caminhos muito bem conhecidos. Entrou à capela, fez breve oração e pediu ajuda para o santo da casa. Percorreu o caminho até a ribeira, como fizera com o irmão. Sentou à beira da água. Tirou um lenço e secou o suor do rosto.
Fechou os olhos e repetiu a frase: vamos deixar debaixo dessa pedra. Quando novamente os abriu, deparou-se com uma árvore do outro lado da margem. Observou-a com curiosidade. Percebeu o tronco velho, os galhos tortos e firmes. Decidiu ir até o outro lado da margem. Deu a volta pela esquerda até a pequena ponte, atravessou-a e caminhou ao ponto desejado. Ao chegar à sombra da árvore, sentou-se um bocadinho ao tronco. Observou o rio dali e teve um lapso de memória.
A mente o levou a relembrar que nadara um certo dia com o irmão. Os dois fizeram o mesmo desafio de atravessar a nado aquele trecho do rio e aquela fora a primeira vez que Francisco vencera. Pôs-se a chorar copiosamente.
Levantou uma pedra ao pé da árvore, cavou um bocadinho com a mão a terra. Encontrou a tampa de uma garrafa enterrada. Foi o prémio ao vencer Bruno. O irmão dera-lhe a tampa do refrigerante que levara para o rio naquele dia. Sentia-se aliviado. Feliz. Por fim, todos os anos de angústia estariam acabados.
Decidira voltar para casa no dia seguinte e colocar em prática a viagem de carro. Iria convidar o amigo Roberto para acompanhá-lo. Será que ele aceitaria?
Em Lisboa, ao chegar em casa do amigo, fora avisado pela vizinha que o professor havia falecido naquela noite em decorrência de um ataque cardíaco. Atordoado com a notícia, entrara no carro e partira sem direção. Porque a vida deve fluir como a água de um rio.

terça-feira, 29 de abril de 2014

remedinhos

que a vida seja plena
o amor, o maior dos bens
um sorriso, uma cura
um abraço sabe bem

preencha o coração
sinta a respiração
nada do que fazemos
(quando para o bem)
é em vão

poema da revolução

minha senhora, tem um cigarro?
não, meu bom soldado. eu não fumo
mas, olha, tenho aqui um cravo vermelho. aceita?
obrigado, minha senhora. deixarei-o no cano do meu fuzil

e esse foi o disparo que marcou a revolução

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

começo...

sem princípios
a vontade de ser meio
chegará ao fim

correr para o amor

a caminhada faz-me sentir o frio nos ossos
pensar na rigidez dos sonhos com olhos abertos
na impossibilidade de fazê-la a mulher mais feliz
mostra a mim o quanto posso destruir um coração
inclusive o meu
vou correr para a morada
amolecer os sonhos
ir ao encontro dela
perder o fôlego para dizer:
- amo-te

esperança em flor

a esperança renasce
como a flor insistente
em estar lá
para o jardim enfeitar

o avesso

atravesso o inverso
estático fico
todo o avesso
mexe comigo