Francisco Oliva Oliveira.
Esse é o nome da nossa personagem principal. Não usaremos o termo protagonista
porque, mesmo sendo um bocado estranho, não somos protagonistas de nada.
Também não sejamos
fingidores. Essa pobre criatura não existe fora do todo contextualizado nas
linhas que hão-de seguir. Mas, meus caros senhores, hei-mos de lembrar da
familiaridade da vida, ainda sendo esta – como dizem – tão singular.
Francisco Oliva Oliveira era
um homem com algumas dezenas de anos de idade. Sujeito com uma não disfarçada
corcunda cervical surgida não por efeito vitorioso da gravidade ou resultados
naturais ao avançar da idade, mas sim pelo peso do desânimo presente há muitos
anos em sua vida.
Seus olhos pretos pareciam
azeitonas de má qualidade acabadas de serem retiradas de uma salmoura rançosa
qualquer. Sempre estavam marejados, miúdos e ranhosos. Pareciam querer se
esconder do mundo. Porém, fechar os olhos não bastava para isso.
Tinha estatura mediana. Sua
pele era da mesma tonalidade da cor da pele de um mouro. Aliás, ele lembra de
seu pai a descrever a árvore genealógica da família, e de descobrir os traços
característicos ao reconhecer as descrições quando fitava o seu reflexo ao
espelho. O seu sangue provinha dos povos da antiga Mauritânia. Não sentia
orgulho ou desgosto por isso.
Devido a uma queda que
sofrera quando arriscara fazer uma caminhada pelas trilhas de Sintra, quando
jovem, ficara manco da perna esquerda.
Tinha, desde então, um andar
cambaleante. Hesitava sempre em mexer o membro afetado e isso, repetidamente
por anos, fez ele adquirir uma peculiar esquisitice ao locomover-se.
Na altura do acidente,
quando fora avisado pelo médico ortopedista que quebrara o fémur e o acetábulo,
fizera uma promessa: se saísse ileso daquela situação sem sequelas, nunca teria
um carro ou moto. Pois bem, como eu lhe disse meu senhor, ele ficara manco.
Teve, portanto, alguns carros.
Nunca mais a vontade que
tivera em ganhar a Europa guiando um automóvel ressurgira. Perdeu tal vontade
quando a perna ficara rota. Teve de deixar de lado as aventuras. Os mapas
traçados com o roteiro a sair de Lisboa, passar pelos países sulistas do Velho
Mundo e regressar pelo norte, ficaram guardados às gavetas dos inúmeros
armários da antiga casa dos pais onde nascera e fora criado. Guardadas também
estavam a jovem vontade e a força.
Todos os projectos de vida
não eram concretizados. Refiro-me apenas aos ligados à aventura, como por
exemplo fazer a referida viagem, ou qualquer projecto com desafios, porque
nunca mais propunha a si mesmo desafiar-se. Perdeu o interesse.
Fora por indicações médicas
psiquiátricas que começara a escrever. Escrevia não pelo gosto ou prazer.
Pode-se arriscar dizer por desgosto mesmo. Escrevia para esvaziar ou tentar
reviver lembranças do irmão. Não se prendia a géneros ou a formas, deixava
apenas as palavras seguirem a vida, o rumo delas próprias. Já que a vida
faz-nos piadas de mau gosto e ri-nos da nossa pequenez e insignificância.
De linha em linha, o
conjunto dessas letras ganhava a atenção de Francisco e isso era o que
importava para ele. A escrita servia como catarse. Cuspia tudo o que lhe vinha
à mente de forma intranquila, de um modo caótico e, por muitas vezes,
desconexo.
Quando as palavras surgiam,
precisava logo de anotá-las. Cada uma poderia ser um indício, uma vaga
lembrança, servir de esperança. E nada deveria ser perdido, desperdiçado.
Absolutamente nada. Do contrário, elas esvaiam-se na poeira da memória feito
pólen na primavera.
Para se precaver das perdas
vocabulárias, comprava blocos de anotações com capas vermelhas. E neles
encontravam-se rabiscadas tantas palavras e junções que arrancavam sorrisos
meia-lua esperançosos da alma desse homem. Era difícil manter a esperança
diariamente. Cada dia era um dia. Não se sabia se um dia a mais ou um dia a
menos.
Frequentava a infância
furtivamente porque acreditava encontrar lá um alento, uma resposta para a
infelicidade presente até hoje, algo que acalmasse a dor causada pela falta do
estimado irmão. Acreditava nisso. Estava sempre à procura das reminiscências
para se pôr a par das ausências.
Gostava de saber porque perdera
a luz, porque e em qual das alturas da vida a alma apagou algumas das suas luzes.
Algo o deixara com a cabeça atormentada na infância. A sua mente cruzara alguns
caminhos e não soubera retornar ao ponto de partida. As conexões ficaram
confusas. Por isso frequentara seções de terapia duas vezes por semana durante alguns
anos. Depois, tivera a certeza por si só de isso não bastar e resolveu abandonar,
contrariado pela mãe, o tratamento.
Lembra de ser uma criança
feliz e de brincar com os pais e com o irmão, fazer dezenas de viagens no
verão.
Tais andanças eram devidas
ao espírito aventureiro do pai, Afonso de Oliva Oliveira. Este senhor português,
desde muito antes de acumular fortuna com o comércio, já havia conhecido dezenas
países e lugares em todos os continentes. A vontade de cruzar a europa a
conduzir um carro partira do pai e Francisco, o nosso protagonista, apoderou-se
do sonho paterno.
A mãe dele também era uma
aventureira. A chilena María Muños de Oliveira conhecera o futuro marido numa
viagem que fizera a Grécia. Naquele país, os dois denunciaram um ao outro um
amor à primeira vista. Renderam-se ao amor e juntaram-se à vida.
Quando a família perdeu para
o rio o filho mais velho, todos somatizaram o abalo e sofreram por anos. A
vítima, sem saber, fizera outras vítimas. Porque quando morremos, corações
sofrem, espírito e corpos adoecem, e até por vezes até padecem.
Fora no Tejo que o único
irmão de Francisco falecera, quando nadava contra uma forte correnteza. As
braçadas firmes e perfeitas pretendiam ganhar uma aposta: nadar maior distância
percorrida em um minuto. Rituais de passagem quando se é novo e anda-se com a
malta. É preciso estar entre os melhores desde miúdo. É preciso ainda ser o
melhor entre os miúdos.
Quem estava presente naquela
fatídica tarde, disse ter visto os braços do rapaz pararem de bater e de seguida
o corpo ser levado pela correnteza. Bruno era astuto e forte, características admiradas
pelos amigos. Para Francisco, o irmão era um ídolo.
É triste quando um dos
nossos morre. Desolador é morrer por três cigarros. Esse era o prémio da
aposta: três míseros cigarros.
A depressão tomou conta de
todos por mais tempo do que deveria conservar um luto. Se é que coisas desse
tipo são possíveis de mensurar o tempo certo a durar. Era uma família feliz.
Não apenas durante os almoços dominicais ou em festas familiares.
Depois da tragédia, a mãe e
o pai, um casal amigo e inseparável, mal se falavam. Isso foi demasiado
estranho. Antes, diariamente e religiosamente, os dois sentavam-se à varanda no
final da tarde para tomar chá preto e conversar, fazer um resumo do dia e
relembrar. Não passaram a odiar-se. Não houve desamor. Era mesmo a dor. A
maldita dor.
Com Francisco não foi
diferente: o puto fechou-se num mundo particular, onde pensava somente em tudo
o que vivera com o mano. Parou de se alimentar e adoeceu. A inanição, somada ao
grande golpe da vida, provocou danos sérios à sua saúde. Incluindo a perda da
memória. Depois de tratamento longo, pode-se dizer que superou, em partes, o
baque.
Como passou a escrever, na
verdade, a escrita servia-lhe também como ferramenta de busca por informações do
irmão, estava sempre a rabiscar palavras com intuito de buscar as lembranças.
Não eram as simples informações as quais conseguia-se com os amigos e
conhecidos. Tratava-se de coisas feitas apenas pelos dois, na cumplicidade e
parceria dos irmãos, só e apenas por eles, e ninguém fazia a mínima noção disso.
Numa tarde qualquer,
Francisco estava deitado com a cabeça apoiada em um travesseiro com fronha
poida. Adorava roupa de cama velha. Olhava pela janela à sua direita e via o
sol a bater nas folhas de umas árvores grandes. O vaivém o fez lembrar de um
final de semana de verão em casa da avó Benedita, no Alentejo.
Depois do almoço, sempre
caminhavam pelas terras da família e sentavam-se à sombra das árvores para
comer figos e outras frutas. Naquela altura, os irmãos sempre se separavam dos mais
velhos e caminhavam para a ribeira a fim de nadar um bocado. Lá ficavam por uma
hora ou duas, depois juntavam-se novamente ao grupo.
Durante essas
reminiscências, uma frase veio como um clarão e não saia da cabeça de Francisco:
“vamos deixar debaixo dessa pedra”. E isso o deixou com a curiosidade a latejar
como quando estamos com muita dor de cabeça.
- “Vamos deixar debaixo
dessa pedra”, dizia ele em voz alta.
Repetidas vezes. A balbuciar
cada palavra como um calão popular. Como se estivesse a chamar nomes aos quatro
ventos para desabafar. Decidiu caminhar até ao lago do Carmo, onde lembrava de
ver tantas pedras das ruínas da igreja. Ele, o irmão e os amigos jogavam à bola
nesse largo e, por diversas vezes ela iria parar por entre os escombros que ali
estavam.
Sentou-se à esplanada de um
café, em uma mesa bem próxima ao chafariz, pediu um descafeinado cheio e uma
água com gás. Ficara ali tempo suficiente para desistir de recordar de alguma coisa
substancial.
Levantou-se e, quando
começou a subir a rua da Oliveira ao Carmo, em direcção ao miradouro, resolveu
parar mais um bocadinho. Virou à direita da primeira travessa e sentou-se ao
sopé de uma comprida porta verde que estava com ar de arranjada a pintura recentemente. Tirou do
bolso do casaco o livro vermelho e escreveu:
“Imperecível é a dúvida e a
vontade da vida. Qual é a distância a ser percorrida? Eufemismos desagradáveis,
sustentáveis para eu poder seguir. É como quando fazia com o meu amigo Roberto:
todas as piadas são um caminho certo. Rir é mais que um santo remédio”.
E lembrou-se do amigo
Roberto. Há tantos anos não o ia visitar. Será que ainda vive àquela casinha bem
próximo a igreja da Memória? Decidiu ir até lá para conferir. Não tinha
compromisso algum mesmo. Apanhou o eléctrico ali próximo, desceu ao Cais do
Sodré e subiu ao 15. Saltou ao Mosteiro dos Jerónimos e caminhou até a casa do
amigo.
Tocou a campainha. De dentro
da residência, saiu um senhor muito animado e bem-disposto. Sim, tratava-se do amigo
Roberto, um professor universitário reformado.
- Olha quem resolveu
aparecer. Anda cá e dá-me um abraço, Francisco. Quantas saudades tuas. Anda,
entra. Vamos tomar um café.
E Francisco, depois de
abraçar o estimado amigo, segui-lo pelo corredor ladeado com dezenas de plantas
e flores coloridas até a entrada, disse:
- É com muito gosto que
entro. Mas só bebo descafeinado.
O amigo pôs-se a rir
baixinho e a pensar nas exigências feitas pela velhice.
- A cafeína não te faz bem?
- Não. Tira-me o sono e
deixa-me irritado.
- A mim é isso também, só
que ao contrário. Ehhe… Dá-me sono e deixa-me alegre. Na medida que preciso. É
melhor isso aos remédios para dormir e sorrir. Há dezenas da velha-guarda nesse
estado, a gastar o dinheiro da reforma em dúzias de comprimidos. Sorte a minha
desse meu vício do café calhar-me muito bem.
Francisco ficou meio sem
jeito por fazer parte do grupo ao qual Roberto estava a gozar. Decidiu
perguntar ao amigo se ele não tinha cápsulas de descafeinado. Roberto riu,
agora em voz alta.
- Cápsulas? Isso lá é café?
Meu amigo, café feito em casa à maneira é de saco ou na Moca. Dessas maquinetas
só vejo em casa dos meus filhos e em lojas. Lá, eles nem mo oferecem. Já sabem
da minha opinião. Mas deixa lá de parvoíce e toma uma xícara.
Francisco aceitou para
mostrar que ainda aguentava firme ingerir alguma quantidade de cafeína a
acelerar e desestabilizar todo o corpo.
Seu amigo, depois de servir
aos dois e sentar-se, perguntou, e gostava mesmo de saber, ao amigo o porquê de
aparecer em sua casa depois de tantos anos. Mas antes de Francisco responder
qualquer coisa, Roberto foi logo a dizer:
- É por conta do teu irmão,
estou certo? Olha, tu ainda não aprendeste a lidar com a morte dele. Deixe-o
sossegadinho lá. Deixe-o descansar como se deve. Já lá se vai tanto tempo.
- Diz-me isso porque não foi
um dos teus que se afogara. Se estivesses tu em meu lugar aí é que eu gostava
de ver.
Ficaram os dois em silêncio
a ouvir um disco de Carlos Paredes a tocar bem baixinho, a embalar as ideias
nas cabecinhas grisalhas dos velhos conhecidos. Quando começaram as primeiras
notas de Verdes Anos, os dois puseram-se a chorar calados. Olharam-se
mutuamente e sentiram o vazio, um pedaço da solidão de suas almas.
- Sei o
que é a perda. Não te lembras da morte de Rosário? Perdi minha companheira
brutalmente, nem gosto de lembrar. A vida perde a cor quando perdemos um amor.
Não é mesmo? Mas a minha vida, assim como a tua, continua. Não posso
desperdiçar o que Deus me dera. Tu também não devias.
- Sim. É
verdade. Concordou Francisco meneando sinuosamente a cabeça. E continuou:
- Vim
até cá ter consigo porque lembrei de uma frase. Gostava de saber se mo podes ajudar.
- Frase?
Ó pá, qual frase?
- O
Bruno dissera-me “vamos deixar debaixo dessa pedra”. Sabes o que pode ser?
- Gostava
de saber. Mas não faço lá ideia do que se trata. Pode ser muita coisa como
também poderá não ser nada. Ele disse mesmo isso? Tens a certeza? E se for a
tua cabeça por meio da imaginação, cansada desse assunto, a pregar-lhe peças
para largar disso de uma vez? Deixa lá isso. Toda gente se vai. Um dia serei eu, outro dia serás tu. Só não sei se tu vais primeiro ou eu é quem vai.
- Bem,
pensei que talvez...
E suspirou por não ter
conseguido êxito. Mais uma vez, ficaram em silêncio. Ao fundo Paredes tocava
Canto do Amanhecer, e inebriado pela melodia, Roberto perguntou ao amigo:
- Já reparaste no tempo que
andas a perder? A vida é muito curta para se ocupar com coisas que não nos
levará a nada. É preciso ter força todos os dias. É preciso agradecer por estar
vivo e poder desfrutar de tudo. A consciência disso nos vem tarde, mas nunca é
demasiado tarde para se perceber. Aposto que ainda tens os blocos de anotações
guardados e ainda carrega um consigo. Estou certo? Aproveita dessas anotações e
escreva um livro. Aproveita tudo isso.
Francisco apenas olhou para Roberto com
ar de quem não precisa pronunciar palavras para dizer algo.
A angústia naquele olhar
estava nítida. Afinal, Francisco gostava de esquecer tudo aquilo. De, assim
como disse-lhe o amigo, seguir a vida e não perder mais tempo.
Ninguém é dono do tempo, mas
é responsável, sim, pelo tempo perdido. E nessa métrica a conversa foi
encerrada. Francisco aproveitou o começo do escurecer do dia e pediu licença
para ir-se embora. Disse estar cansado demais para uma quarta-feira.
Ao atravessar o portão
enferrujado e preparar-se para descer as três escadinhas que separavam a casa
da rua, Roberto começou a falar novamente:
- Olha, lá. Tens mesmo de
deixar tudo isso, meu amigo. Venha cá mais vezes quando quiser. Podemos sempre
conversar um bocado de futebol ou posso contar anedotas de quando lecionava
Literatura na faculdade. Tenho boas histórias. São tantas as lembranças… Isso
mantém uma pessoa viva, as boas recordações. As boas…
Quando parecia terminado o
discurso, ele ainda faz mais uma pergunta:
- E a tua viagem pela Europa? Não esqueço-me disso. Lembro-me perfeitamente do plano de passar pelos
países dentro de um carro. Vais criar coragem e realizar isso? Hã?
Francisco permaneceu parado
por mais uns minutos. Na janela da casa ao lado, uma senhora muito idosa
espreitava-o com curiosidade passiva. Lá estava ela, do lado dela. Lá estava
ele, do lado dele. Mas ambos pareciam não estar. A velha senhora via o mundo
pela janela da sala. Francisco pensou que logo estaria tão velho quanto ela. E tão logo teria uma janela fechada para o seu mundo. Não desejaria isso. Ninguém quer uma janela para uma parede cinzenta.
A sua mente parecia um
turbilhão de ideias. Em parte, por culpa da cafeína. Os pensamentos os levaram
a imaginá-lo também numa janela, a murmurar pelos últimos dias de vida. E
pensou no irmão. Pensou nos pais. Pensou nele. Na solidão dele. Na solidão dos
dias. Lembrou da vida. Pôs-se a olhar para as mãos e perceber uma pele a perder
a lutar contra a idade. Virou a cabeça para Roberto.
- A Viagem ainda vive. Está
guardada, mas vive. Tens razão, meu amigo. É preciso seguir em frente. Assim
como os planos da viagem, preciso sair dessa gaveta poeirenta e cheia de
traças. Passo cá outro dia.
Foi até
ao final da viela e virou à direita. Sentou-se num banco em madeira pintado de
amarelo, tirou o bloco do bolso, sacou a esferográfica preta e escreveu:
“Conversar é necessário para
expor. Mas cuidado para não se expor demasiado. As palavras são amigas e
inimigas do homem, seja ele um sábio, seja ele leigo. Tentar encontrar algo,
pode fazer perder aquilo que não tinha. Perder é ganhar. Perder-se é
encontrar-se. É preciso dizer sim à vida. É a altura disso”.
Lera rapidamente as palavras
acabadas de escrever. Fechou o bloco e o guardou juntamente com a caneta. As
mãos ainda tremiam por efeito da cafeína. Por Deus! Não estava mesmo mais
habituado com os efeitos por ela causados.
Levantou-se e atravessou a
rua. Fora até a paragem de táxi. Entrou e pediu para o chofer o levar para
casa. Quando lá chegou, tirou as meias e deitou-se na cama. A cabeça estava a
doer e precisa descansar.
O dia
amanheceu chuvoso. Uma chuva em pleno verão, vá lá. Francisco sentia-se melhor
em relação a dor, mas angustiado com tudo o que dissera Roberto. Estava a
cobrar-se por ser egoísta a ponto de esquecer de tudo e querer entender o
passado. Pensou nos motivos por nunca ter casado e não ter filhos. Isso o
deixou triste. Poderia ser uma pessoa mais feliz se tivesse formado família.
Levantou-se e dirigiu-se à casa de banho. Enquanto sentia a água abençoar o corpo, começou a dizer bem
baixinho a frase: vamos deixar debaixo dessa pedra. Mas o que será isso? Perguntava a
si. Sem resposta para si.
Vestiu-se. Calças em cor
bege, pólo branco e sapatos castanhos. Desceu à rua e foi ao café habitual para
fazer o desjejum. Tosta mista, galão descafeinado e pastel de nata. Ao final,
traz-me uma Pedras fresca, se faz favor. Esse foi o pedido. Comeu devagar, não
tinha pressa para nada. Espera, tinha sim uma pressa: a interior, em desvendar
o enigma da frase lembrada.
Ao sair do café, fez
festinhas na cabeça de um puto com caracóis alourados. O miúdo de uns dois
anos, sorriu alegremente para Francisco. Este ficara satisfeito com o gesto.
Resolveu retornar para casa.
Ao abrir a porta, olhou directamente para a parede à sua frente. Bem ao lado
esquerdo desta, havia uma fotografia emoldurada de preto. A imagem fora retratada
na quinta de sua avó no Alentejo. Sim, naquela mesma em que a família passara
feriados e finais de semana.
Pensara que aquilo era um
sinal e deveria de segui-lo. Iria para a quinta tentar lembrar o que
significava a frase. Tentar descobrir algo para deixar as lembranças de lado.
Afugentar a tristeza pela falta do irmão. Deixá-lo em paz. Ficar em paz. Viver,
enfim, em a sua paz.
Preparou uma mala breve, com
mudas de roupas, toalha e pijamas às riscas. Retirou as chaves do Mercedes
preto guardadas na gaveta junto com os blocos de anotações preenchidos nas últimas semanas. Francisco ainda
permaneceu alguns minutos a folhear páginas. Encontrou isso:
“Estou certo da incerteza.
Posso dizer ao acaso que apareça apenas com hora marcada. Quando as luzes não
acenderem, a solidão anseia por conversa e arrisca uma nova amizade. Fugir para
ficar calado, triste solução. Às horas, virá quem há-de vir. No mais tardar, fique tranquilo porque o
sol lhe fará companhia às sete da manhã do outro dia”.
Ficara ainda mais animado
depois de ler essas palavras escritas por ele. Pensara ser mais uma
coincidência a incitá-lo a seguir com a viagem. Sem demora, tirou o carro do
parque e seguiu estrada fora.
Ao chegar à quinta, o
zelador e sua mulher estranharam a presença inesperada.
- Bom dia, senhor Francisco.
Veio sem avisar?
- Bom dia, senhor Pedro. Bom
dia, dona Maria. Decidi na última das horas que viria cá hoje mesmo. Não se
preocupem comigo. Sei onde está tudo e arranjo-me sozinho. Peço, por favor, que
prepare para mim o pequeno-almoço e almoço para amanhã. Está tudo bem por aqui?
- Pode deixar. Está tudo
bem. Se precisar de alguma coisa, estamos cá. O quarto do senhor está em ordem,
assim como toda a casa.
- Obrigado. Respondeu ainda
com o carro em movimento.
Deixou a mala em cima da
cama muito bem arranjada. Parecia até que o esperavam. Foi à cozinha, bebeu um
golo d’água. Saiu em direção ao caminho que a família fazia quando todos lá
estavam.
Caminhou com o espírito
confiante e a cabeça erguida os caminhos muito bem conhecidos. Entrou à capela,
fez breve oração e pediu ajuda para o santo da casa. Percorreu o caminho até a
ribeira, como fizera com o irmão. Sentou à beira da água. Tirou um lenço e
secou o suor do rosto.
Fechou os olhos e repetiu a
frase: vamos deixar debaixo dessa pedra. Quando novamente os abriu, deparou-se
com uma árvore do outro lado da margem. Observou-a com curiosidade. Percebeu o
tronco velho, os galhos tortos e firmes. Decidiu ir até o outro lado da margem.
Deu a volta pela esquerda até a pequena ponte, atravessou-a e caminhou ao
ponto desejado. Ao chegar à sombra da árvore, sentou-se um bocadinho ao tronco.
Observou o rio dali e teve um lapso de memória.
A mente o levou a relembrar
que nadara um certo dia com o irmão. Os dois fizeram o mesmo desafio de
atravessar a nado aquele trecho do rio e aquela fora a primeira vez que
Francisco vencera. Pôs-se a chorar copiosamente.
Levantou uma pedra ao pé da
árvore, cavou um bocadinho com a mão a terra. Encontrou a tampa de uma garrafa
enterrada. Foi o prémio ao vencer Bruno. O irmão dera-lhe a tampa do
refrigerante que levara para o rio naquele dia. Sentia-se aliviado. Feliz. Por
fim, todos os anos de angústia estariam acabados.
Decidira voltar para casa no
dia seguinte e colocar em prática a viagem de carro. Iria convidar o amigo
Roberto para acompanhá-lo. Será que ele aceitaria?
Em Lisboa, ao chegar em casa
do amigo, fora avisado pela vizinha que o professor havia falecido naquela
noite em decorrência de um ataque cardíaco. Atordoado com a notícia, entrara no
carro e partira sem direção. Porque a vida deve fluir como a água de um rio.