segunda-feira, 31 de agosto de 2009

só, no botequim

Marcelo tem 33 anos. Numa mesa de botequim, sente saudades dos amigos que não teve. Lembra-se do sorriso daqueles que não conviveu. Personagens inanimados, inatingíveis, permanecem presos à memória. Inadequados em seu tempo-espaço. Não saem de perto. Não estão por perto. Nunca estiveram.
Há poucos copos. (Os copos existem e conversam. Se aproximam da boca. Beijam.) Apenas um, na verdade, que divide com ele o conteúdo líquido da garrafa. Não há mulheres, pessoas com padrões estéticos, não há pessoas sorrindo e ele não está numa praia vestido com calção de banho. Apenas na TV e nos cartazes colados nas paredes a cerveja oferece acompanhantes, amizade fácil e sensação de felicidade intensa. A ruiva com olhar felino da Antarctica o encara. Ele disfarça. Foge da loira da Kaiser para não ter dor de cabeça.
É noite. E está agradável. Marcelo conclui que não há divisão para um. Isso é nostálgico e filosófico. Em toda mesa com bebida e copos cheios há filosofia do cotidiano e grandes filósofos anônimos. Um velho passa e sorri com a máscara da felicidade disfarçando a agonia interna.
Pensamentos. Devaneios. Realidade. Essa sequencia lhe traz um vazio letárgico momentâneo.
Recorda. Acorda. Recorda. Nesse jogo, percebe que a bebida esquentou. Pede mais uma. Garçom, por favor, me traga outra cerveja porque essa beberam por mim.

sábado, 29 de agosto de 2009

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

(re)mutação

larva
no casulo ganha asas
borboleta
no redemoinho perde as asas
larva

gjamarra

morre-mata. morre-mata. morre-mata. morre-mata
mata-morre. mata-morre. mata-morre
morre-mata. morre-mata
mata-morre
morre
mata
morre-mata
morre-mata. morre-mata
mata-morre. mata-morre. mata-morre
morre-mata. morre-mata. morre-mata. morre-mata

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

homem sagaz

anda depressa
cabeça de pé
passos a-pon-ta-pé
segue
pisando
aponta
o dedo
não olha
para si
alma
parece
não ter
homem sagaz
de pensamento
tenaz

terça-feira, 18 de agosto de 2009

página policial

Tempos duros. Marcelo Trivinho, famoso engenheiro civil de Engenópolis, tivera de dar adeus à fortuna. Fernando Abreu, advogado, amante de Dulcinéia, sua esposa, planejou um esquema para furtar tudo o que pertencera ao antigo patrão; inclusive a ex-mulher. A empreitada deu certo. Individado e amargurado, Trivinho vendeu a empresa. Quitou todas as dívidas trabalhistas. Com o restante do dinheiro comprou um quarto-e-sala no cento daquela cidade. Lugar horrível. Com o moral abatido, deixou a carreira construída com muito trabalho, bons contatos de diretores de estatais e pequenos subornos em licitações públicas. Arranjou um emprego num posto de gasolina. Abastecia os carros. A única coisa que lhe rendia felicidade era estar em casa e tomar um Martini. Quando rico, chegava em sua mansão, tirava a gravata, punha os pés numa alfomofada confortável e pedia para a empregada lhe trazer um drink. Antes, com duas pedras de gelo e uma cereja. Hoje, a bebida desce seca. Amarga. Direto do gargalo para os rins trabalharem. Depois de longos goles, entorpecido, adormece. Acorda com a mesma dor de cabeça de sempre. "Por que Dulcinéia fez isso comigo? Por que ajudou aquele verme a tirar tudo de mim? Além de tudo, a puta foge com ele!". Antes de ir para o trabalho, gostava de escutar Billie Holiday (sim, ele tinha bom gosto para música) e acompanha-la tocando gaita. O som lhe trazia nostalgia. Lembrava de quando ganhara o instrumento. Um presente do pai. Triste, começou a beber novamente e dormiu. Acordou às seis e dez da tarde. Demorou algum tempo para assimilar a falta ao trabalho. "Amanhã eu vou". E voltou a dormir. No dia seguinte, o patrão lhe despediu. Não adiantava argumentar as faltas consecutivas durante uma semana, o uniforme sujo e fedido e a aparência horrível. Pegou os trocados de direito e parou no primeiro boteco. Pediu Martini. Ganhou uma risada cínica do balconista. "Aqui só tem Pitu". Dá uma garrafa dessa merda mesmo. E mandou ver. A noite chegou e Trivinho pediu mais uma garrafa. A colocou debaixo do braço e foi embora cambaleando. Não voltou para o apartamento imundo e mal conservado. Ficou ali mesmo, na sarjeta. Se alimentava cada vez menos e bebia mais. Gostava das ruas e sentia um certo prazer boêmio. Pedia esmola durante o dia para reverte-la em cachaça. "Pura, por favor". Na roda, com os inquilinos mendigos, tocava gaita em troca de uma bebidinha. Sentia-se cada vez menos só e traído.
Uma noite dessas, perdidas como todas, acordou com um cachorro a lamber o seu nariz. Trivinho ficou puto e deu uma bofetada no bicho. Ele ganiu, mas continuou a lambê-lo. "Sai, cachorro". O bicho não saiu. Foi se aproximando e deitou mais perto. Os dois dormiram. Na manhã seguinte, houve uma conversa entre cão e homem. Ambos se entenderam rapidamente e tornaram-se amigos. Trivinho tocava gaita para seu novo companheiro. "O seu nome vai ser Pinga porque é a coisa que eu mais gosto". Este uivava incomodando quem dormia na marquise da antiga fábrica de vidro. Agora, o lugar servia de casa para moradores de rua e viciados em drogas. Os dois acabaram sendo expulsos do local. Andarilhos, encontraram um chalé, ou o que restava, abandonado. Foram para o porão. A rotina era a mesma. Durante o dia uns trocados e à noite, pinga e comida barata: coxinha e pão com mortadela. Tudo no bar do Tião. A vida foi sendo levada assim. Trivinho já não sentia falta do velho padrão de vida e não se questionava ou tentava entender porque as coisas aconteceram daquela forma.
Numa certa noite achou uma nota de cem reais e foi até o bar do velho Tião para se alegrar um pouco. Bebeu o que aguentou. Pagou algumas rodadas e, com o restante, comprou mais bebida para levar ao porão do chalé. O recanto. No caminho, alguns cães atacaram Pinga. Trivinho foi defender o amigo e recebeu dezenas de mordidas nas pernas. O cão perdeu uma orelha. Ambos conseguiram andar até o lar. Trivinho sentia as pernas inchadas e dores horríveis. Sentou no seu canto do chalé e pos-se a beber. Quando acordou, as pernas estavam piores. Ele não ligou. Ainda tinha cachaça. Os dias foram passando. O cheiro das pernas emputrefando se sobressaia ao da sujeira, suor e cachaça. Não se tinha de comer. E pior, nada para beber. A febre castigava Trivinho. Tinha miragens. Lembrava incessantemente de Dulcinéia e Fernando Abreu. Queria vários litros de Pitu, mas não se tinha uma gota. As pernas não mechiam. O suor escorria pela face. Sem ter o que beber, a fome lhe castigava. Não conseguia levantar. Pinga chegou da rua. Deu um olhar triste e fiel, como apenas os vira-latas sabem, e deitou próximo ao dono. "Preciso comer", gritava. "Preciso de uma bebida". Ninguém ouvia. O desespero o possuiu. Trivinho não parava de pensar que fora traído por sua mulher. Tinha raiva. Não parava de sentir aquela dor terrível causada pela inanição e abstinência da cachaça. Não sentia as pernas. Olhou para a cabeça de Pitu. "Eu preciso comer". Colocou a mão no bolso direito das calças velhas, puxou a gaita, estendeu-a ao máximo e...
A manchete do dia seguinte: "Polícia encontra engenheiro morto por asfixia". No decorrer da matéria pode-se ler: "... as investigações terão início hoje. Precisamos saber como a gaita foi parar na garganta do engenheiro Marcelo Trivinho, esclareceu o delegado".

sábado, 15 de agosto de 2009

rotina quebrada

No caminho, um cubículo. Parede externa verde, descascada. Desgastada pela ação do tempo e falta de ação do homem. Porta e janela apenas. Sempre ali. Não vi. Lá dentro, Nelson Gonçalves. ["Ei! Ei! Pare! Pensei"]. Doei atenção por alguns míseros segundos. Nelson merecia mais alguns minutos. Avivei a alma. Senti nostalgia ali. [Ei! Ei! Ande. Para aonde?]. Tomei um tapa da pressa. Segui a passos largos com a rotina puxando-me pelos braços. Aquela voz ainda ecoa e muda o meu dia.

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Celeste

Do meu canto observo-te. Meu mundo em teu mundo azul. Cor natural. Cor artificial. O cinza o toma. Aonde foram as nuvens psicodélicas? Se movimentam noutros mundos? Nascem de outras águas? Não habitam mais aqui? Vou recortar um pedaço de céu visível e guardar na memória. Numa tarde de brisa e chuva futurísticas, aqui em meu canto quadrado, imprimo minhas memórias em papel reciclado e faço um quadro para lembrar Celeste.

terça-feira, 11 de agosto de 2009

olhos de vidro

O velho cego pede esmolas dentro do coletivo. No coletivo se pensa só. A companheira dele recolhe o dinheiro. Pouco. Barganha ruim. Saltam. Chega outro ônibus. Embarcam. Está cheio. Mais pedidos. Música de gaita. Nova coleta. A visão da mulher parece deixá-la cega. Nessa viagem, a quantia foi maior. Isso é o que importa. A oratória e a retórica daquele senhor, que parece se fazer de vítima, lhe vendem a vida. Suas palavras não saem da minha cabeça. Um salmo fácil de decorar: "... o Senhor é meu pastor e nada me faltará...". Agradece, abençoa e vai. Tive a sensação de ter olhos de vidro.

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

poeta

Com caneta empunhada, deslizo a ponta sobre a folha amarelada. A tinta preta grava os sentimentos, o enxergar a vida. Encanto homens e mulheres desvendando a simplicidade escondida. Na natureza e no humano, pinço beleza. No concreto, reto, tiro silhueta. No cair das folhas, escrevo narrativas homéricas. Sinto o gole da cachaça do bêbado. O perfume das flores na calçada. A forma das nuvens. Gotas da chuva e terra molhada. A dança das folhas. Pés descalços na lama. Cores. Amores. Dores. O suor do trabalhador. A sede e a fome. Congelo tempo e espaço para permanecê-los eternos. Sei sonhar. Construo a minha realidade. Faço meu tempo. Sou poeta.

presença

aquele que escreve
sente
quem não escreve
ausente

pescaria

bambu cortado
balança a linha
na ponta o pescado

meus dizeres mínimos

eterno para mim
efêmero para ti
este fenece aqui

distração

O vermelho de tua blusa molhada tingiu o reflexo da vitrina. A cor rebuscada na tonalidade e efeito, causados pela chuva, provocara aqueles que apenas passavam. Teu sorriso. Teu único sorriso ferira as almas distraídas naquela manhã cinzenta de terça-feira.

quarta-feira, 5 de agosto de 2009