sábado, 17 de outubro de 2009

apartamento

estranho o meu lar
aqui parece o meu lugar
vou para outro canto
meus pensamentos estão aqui
meu cheiro está aqui
raízes plantadas
e o verde da paisagem
aqui é alto, bem alto
aí é novo
estava um velho
nesse novo lugar
no terceiro andar
eu não vejo o mar
há um canal
um fio de água
e poucas árvores
margeando e afunilando
meus pensamentos
para o alto

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

água, cigarro e cinzas

Um cigarro boiando na poça d'água. Água na boca com tabaco e nicotina. Fumaça queima o nariz e arde os olhos. Água com sabão nos olhos também arde. Visão limpa. Olhos vermelhos. Brasa na pele. Água esfria. Ferida aberta. Marcada. Cinzeiro, cemitério de brasa. Poça, urna da chuva que faz boiar o cigarro.

a vida como ela é

Rosalva chegara em casa às 6h30 da manhã. Passara toda a noite dançando forró com mais de dez machos no bar do João. Marcos, seu marido, estava deitado no chão da sala quando ela chegou em casa. Ao lado dele, uma garrafa vazia de conhaque barato e maços de cigarro. Rosalva tropeçou no braço do dorminhoco e bateu com o rosto do sofá. - Filho da puta! Gritou a mulher. Marcos fez muito esforço, mas só conseguiu levantar a cabeça por dois segundos. A cabeça pesava. Não deu tempo de ver Rosalva correr para o banheiro para limpar o sangue que lhe manchava a cara. Ao invés de se assustar com o vermelho no rosto, começou a rir desesperadamente. Riu como uma escandalosa. Um desvairio completo. Passou uma toalha branca em cima do ferimento. Um talho de dois centímetros na parte inferior do olho esquerdo. Sentia o cheiro forte do sangue e cerveja junto com perfume e suor dos homens com quem varara a noite. Achava aquilo uma delícia. Um delírio. Resolveu dormir assim mesmo. Foi para o quarto. Atravessou a cortina que separava esse cômodo dos demais. Deitou-se na cama. Estava bem e feliz. Bem suja. Imunda. Tirou os sapatos sem tocá-los. Um no chão. O outro, no colchão. Apagou. Agora, estavam marido e mulher deitados. O homem também passara a noite na farra. Foi para a casa de uma prima de Rosalva, a Carlotinha. Fumou, bebeu, transou. Depois, voltou para o lar carregado pelo instinto. Ao atravessar a porta, deitou no tapete e bebeu o líquido que ainda restava da garrafa furtada da cozinha da amante. Por coincidência, também estava com um corte na face. Um corte que também sangrou. Manchou. Rosalva e Marcos já foram muito felizes. Viviam grudados. Quando completaram dez anos de casamento, resolveram se odiar. Amargar a mesmice da vida. Cada um decidiu que participaria apenas da vida dentro de casa. A vida externa era para cada um. A coisa começou pequena. A mulher saia com alguns e ele com algumas. Isso tomou proporções incontroláveis. Os prazeres carnais e mórbidos eram o que traziam alegria e razões para continuarem a viver. Ninguém entendia isso. Marcos acordou com dor de cabeça. Levantou-se. Jogou a garrafa contra o chão. O barulho dos cacos fizeram Rosalva despertar. - O que é isso, seu louco? Exclamou a mulher. Ele abriu a porta e saiu. Ela voltou a dormir. Ele voltou com uma garrafa de vinho e foi se deitar ao lado da companheira. Sim, eles dividiam o pão. Deu um beijo na sua testa. - Como foi a noite, meu bem? A pergunta saiu da boca dos dois em coro. Trocaram olhares e puseram-se a rir. - Hoje é domingo? - Sim, respondeu a mulher. - Pede cachimbo. - Hã? - Nada, nada. - Faz macarrão? - Claro. - Vou dormir mais um pouco. - Eu também. - Boa noite. - Mas o dia já está claro. - É um cumprimento habitual. - Gozou? - Não interessa. - Foi apenas uma pergunta. - Você quer quebrar o trato? - Não. - Então, tá. - Te amo. - Eu também. E assim era. E assim é, a vida como ela é.

sábado, 10 de outubro de 2009

breve inércia

O vazio no meu peito, inerte na imensidão de teus sonhos, se desfaz em meio ao caos produzido por pensamentos vagos. Me procuro. Encontro uma fuga na profundidade que alcanço quando me vejo em perigo. Desço dentro de mim. Subo ao topo do meu ser. Mentira. É difícil alcançar algo tão distante e abstrato. Sonhei ontem. De tão real, parecia imaginário. No tempo em que reservo para meu sono, permaneço mais acordado. É letárgico. Incontrolável leveza. As palavras explodiram em minha face. Escrevi e não gostei de nada. Não gostar do nada significa gostar de algo. O mais imcompreendido dos incompreendidos está aí, solto, pendurado nas paredes das galerias ou em baixa resolução na internet. A superfície do que me é vago paira em minhas perdições e incompreensões diárias. Detalhes simples, de decodificações complexas. Uma galinha não chocaria o mesmo ovo depois de nascido. Assim como um ovo não chocaria se não houvesse uma galinha para aquecê-lo. Um tiro no escuro, Chico, pode fazer lágrimas sangrarem. A casca de noz. Nós estamos em nossos pequenos universos, Sthefen. Temos medo, ou nos protegemos demasiadamente, da intromissão de outros mundos em nosso mundo. Há desespero e o grito não sai estridente pela boca até ferir ouvidos. O peito que estava vazio, se enche. Já estou cheio do vazio. O que fazer? Talvez, caminhar por aí, em busca das realizações dos meus sonhos sempre mais acordados do que eu, quebrando esta breve inércia.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

momentâneo

como um sopro
felicidade momentânea
na risada falsa do palhaço
em sua real tristeza

o desespero humano é aliado
amigo dos que questionam
um certo olhar malicioso
pode dizer quem és
em tua face
à meia lua estampada

felicidade
como um tiro no escuro
atinge a quem não espera
risos e aflição
aos perdidos, um caminho a buscar
na eternidade de um sorriso

breve
como a vida
difícil como a morte
despedida da tristeza
nesse gesto
inesperado

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

vidinha

Acorda o galo ao acender a luz da cozinha. Não há mais o velho lampião a querosene. "Banho frio deixa os músculos firmes", lenda herdada do avô. Dois dedinhos de café de coador, como a mãe lhe ensinou. Pão com manteiga caseira. Um beijo na menina que dorme como anjo. Vai lembrar disso durante a longa caminhada de quinze milhas. Solado do pé parece sola de sapato, rachado como riacho seco. Continuar a rotina. Domingo a domingo, sem dia de folga. Ficar ao lado de Maria, que reclama da vida, até enfartar um dia e não desfrutar mais do amor e das amadas. O único deleite, desse caboclo, é colher do chão e das árvores toda a sua vida entregue em enxadadas na terra vermelha, e rezas para Padre Cícero fazer a chuva cair.

sábado, 3 de outubro de 2009

mais

Fiquei contente em saber. Aliás, estou assim há muito tempo. É bom sentir-se bem. Em relação ao que não sei explicar, não me faça tais perguntas. Não te respondo. É visível que estamos aqui. Não de passagem. Nuvens passageiras só no verão. Esperem para ver o que acontece com quem não acorda. Aguarde o sal escorrer. Se vai como num sopro de vento na praia. Espalha areia em cima de um monte de areia. Reparaste como os dias parecem ter menos de 24 horas? Assim falo também das semanas e meses. Uma coisa é consequência da outra. Assim, sucessivamente. Acordo às nove horas e, quando dou conta, está na hora de ir trabalhar. O dia passa, hora de descanso. Também sinto algo que não sei lhe explicar. O corpo responde. Interpreta tudo o que lhe foi e é feito. "Você é o que você pensa". Pense bem nisso. Ande devargar nas horas em que tudo parece se apressar. Puxe o teu tapete. No calor, ande descalço. Isso não lhe fará bem se pensas dessa maneira. A grama é fria em dias de sol intenso. A água do mar é quente quando a temperatura está fria. O de sempre, por favor? O quê? O que é o de sempre? A vida é uma continuidade descontínua. Não se deve maquiar. Deve-se acordar e lavar o rosto. Não te preocupes com o que vier. Sabonete com creme hidratante tem um cheiro agradável. A louça está lavada e repousa no escorredor. Lágrimas escorrem do rosto de uma criança que espera o peito da mãe. Um sopro. Um vazio juvenil o acompanha por todos os lugares em que anda. Ciranda. Ciranda. Encontrei o lenço branco. Não caio mais em pranto. Sim, pode perguntar. Sim, ando contente demais. Além do que me cabe, cabe-me ainda mais.

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

enxergar a vida

Ontem me disseram para eu ver. Rebati: prefiro enxergar. O primeiro ato é trivial. O segundo requer atenção aos pequenos detalhes. Existem sinais divinos? Sim, acredito. Ontem tentaram me convencer de que não vale a pena ser honesto. Preferi devolver o troco a mais. Não quero nada dos outros. Quero minha fatia do bolo. Meus goles de café. Minhas xícaras com chá. As crianças transmitem tanta vivacidade e ternura. Pensam ser assaz. Independentes. Velhos possuem a sabedoria da vida. E já estão quase a perdê-la. Se vão daqui para outro mundo. Lá ainda serão os velhos sábios daqui? Seria muito ptetencioso, ao ser humano, se ele pudesse voar sem auxílio de máquinas. Nadar já nos é o bastante. Não se respeita a natureza. Egoísta não é apenas o que pensa em si, mas o que pensa demasiadamente nos outros. Aspiramos o bem-estar de quem amamos e esquecemos de nos deixar ao estar deles. O cuidado deve ser mútuo para com todos. O pessimismo é não querer lutar pela mudança. Enquanto tudo está do jeito avesso, o melhor é reclamar e não fazer o que lhe cabe. Enquanto um adulto continuar a mentir para si, o mundo será uma grande mentira para ele. É preciso enxergar nossos objetivos e saber o que nos vale nessa vida.