terça-feira, 18 de agosto de 2009

página policial

Tempos duros. Marcelo Trivinho, famoso engenheiro civil de Engenópolis, tivera de dar adeus à fortuna. Fernando Abreu, advogado, amante de Dulcinéia, sua esposa, planejou um esquema para furtar tudo o que pertencera ao antigo patrão; inclusive a ex-mulher. A empreitada deu certo. Individado e amargurado, Trivinho vendeu a empresa. Quitou todas as dívidas trabalhistas. Com o restante do dinheiro comprou um quarto-e-sala no cento daquela cidade. Lugar horrível. Com o moral abatido, deixou a carreira construída com muito trabalho, bons contatos de diretores de estatais e pequenos subornos em licitações públicas. Arranjou um emprego num posto de gasolina. Abastecia os carros. A única coisa que lhe rendia felicidade era estar em casa e tomar um Martini. Quando rico, chegava em sua mansão, tirava a gravata, punha os pés numa alfomofada confortável e pedia para a empregada lhe trazer um drink. Antes, com duas pedras de gelo e uma cereja. Hoje, a bebida desce seca. Amarga. Direto do gargalo para os rins trabalharem. Depois de longos goles, entorpecido, adormece. Acorda com a mesma dor de cabeça de sempre. "Por que Dulcinéia fez isso comigo? Por que ajudou aquele verme a tirar tudo de mim? Além de tudo, a puta foge com ele!". Antes de ir para o trabalho, gostava de escutar Billie Holiday (sim, ele tinha bom gosto para música) e acompanha-la tocando gaita. O som lhe trazia nostalgia. Lembrava de quando ganhara o instrumento. Um presente do pai. Triste, começou a beber novamente e dormiu. Acordou às seis e dez da tarde. Demorou algum tempo para assimilar a falta ao trabalho. "Amanhã eu vou". E voltou a dormir. No dia seguinte, o patrão lhe despediu. Não adiantava argumentar as faltas consecutivas durante uma semana, o uniforme sujo e fedido e a aparência horrível. Pegou os trocados de direito e parou no primeiro boteco. Pediu Martini. Ganhou uma risada cínica do balconista. "Aqui só tem Pitu". Dá uma garrafa dessa merda mesmo. E mandou ver. A noite chegou e Trivinho pediu mais uma garrafa. A colocou debaixo do braço e foi embora cambaleando. Não voltou para o apartamento imundo e mal conservado. Ficou ali mesmo, na sarjeta. Se alimentava cada vez menos e bebia mais. Gostava das ruas e sentia um certo prazer boêmio. Pedia esmola durante o dia para reverte-la em cachaça. "Pura, por favor". Na roda, com os inquilinos mendigos, tocava gaita em troca de uma bebidinha. Sentia-se cada vez menos só e traído.
Uma noite dessas, perdidas como todas, acordou com um cachorro a lamber o seu nariz. Trivinho ficou puto e deu uma bofetada no bicho. Ele ganiu, mas continuou a lambê-lo. "Sai, cachorro". O bicho não saiu. Foi se aproximando e deitou mais perto. Os dois dormiram. Na manhã seguinte, houve uma conversa entre cão e homem. Ambos se entenderam rapidamente e tornaram-se amigos. Trivinho tocava gaita para seu novo companheiro. "O seu nome vai ser Pinga porque é a coisa que eu mais gosto". Este uivava incomodando quem dormia na marquise da antiga fábrica de vidro. Agora, o lugar servia de casa para moradores de rua e viciados em drogas. Os dois acabaram sendo expulsos do local. Andarilhos, encontraram um chalé, ou o que restava, abandonado. Foram para o porão. A rotina era a mesma. Durante o dia uns trocados e à noite, pinga e comida barata: coxinha e pão com mortadela. Tudo no bar do Tião. A vida foi sendo levada assim. Trivinho já não sentia falta do velho padrão de vida e não se questionava ou tentava entender porque as coisas aconteceram daquela forma.
Numa certa noite achou uma nota de cem reais e foi até o bar do velho Tião para se alegrar um pouco. Bebeu o que aguentou. Pagou algumas rodadas e, com o restante, comprou mais bebida para levar ao porão do chalé. O recanto. No caminho, alguns cães atacaram Pinga. Trivinho foi defender o amigo e recebeu dezenas de mordidas nas pernas. O cão perdeu uma orelha. Ambos conseguiram andar até o lar. Trivinho sentia as pernas inchadas e dores horríveis. Sentou no seu canto do chalé e pos-se a beber. Quando acordou, as pernas estavam piores. Ele não ligou. Ainda tinha cachaça. Os dias foram passando. O cheiro das pernas emputrefando se sobressaia ao da sujeira, suor e cachaça. Não se tinha de comer. E pior, nada para beber. A febre castigava Trivinho. Tinha miragens. Lembrava incessantemente de Dulcinéia e Fernando Abreu. Queria vários litros de Pitu, mas não se tinha uma gota. As pernas não mechiam. O suor escorria pela face. Sem ter o que beber, a fome lhe castigava. Não conseguia levantar. Pinga chegou da rua. Deu um olhar triste e fiel, como apenas os vira-latas sabem, e deitou próximo ao dono. "Preciso comer", gritava. "Preciso de uma bebida". Ninguém ouvia. O desespero o possuiu. Trivinho não parava de pensar que fora traído por sua mulher. Tinha raiva. Não parava de sentir aquela dor terrível causada pela inanição e abstinência da cachaça. Não sentia as pernas. Olhou para a cabeça de Pitu. "Eu preciso comer". Colocou a mão no bolso direito das calças velhas, puxou a gaita, estendeu-a ao máximo e...
A manchete do dia seguinte: "Polícia encontra engenheiro morto por asfixia". No decorrer da matéria pode-se ler: "... as investigações terão início hoje. Precisamos saber como a gaita foi parar na garganta do engenheiro Marcelo Trivinho, esclareceu o delegado".

Um comentário:

Onairam Pinheiro disse...

Òtimo! Meus parabéns, cabeludo!
(Dulcinéia, Fernando Abreu e Marcelo Trivinho). Só não curti a Dulcinéia. Podia ser uma nomezinho mais simples.
rsrs

Abraçoooooooo meu parceiro!